[RESENHA #038] CONTOS GÓTICOS RUSSOS | VÁRIOS AUTORES


Sinopse: A literatura gótica, igualmente conhecida como a de suspense e terror, teve início na Inglaterra, em meados do século XVIII, e nunca deixou, desde então, de ser valorizada pelos leitores. Os textos que compõem este livro, criados pela imaginação dos grandes autores russos, ilustram as principais vertentes dessa literatura: o conto de terror (O retrato, de Nikolai Gógol), a narrativa de suspense (Os fantasmas, de Ivan Turguênev, O monge negro, de Anton Tchêkhov), o conto de fundo histórico (A família do Vurdalak e O encontro trezentos anos depois, de Alexei Tolstói) e a paródia dos escritos góticos (Bobok, de Fiódor Dostoiévski). Interessantes e fáceis de ler, caracterizam-se tanto pela singularidade das histórias narradas quanto por seu estilo denso, enérgico e pitoresco. Não se desapontará quem os conhecer: vislumbrará, em meio a impressões arrepiantes, aquele lado obscuro e enigmático da Rússia que talvez ignore ainda!

Resenha/Opinião: Será que Horace Walpole com seu "O Castelo de Otranto" (1764), sabia da tremenda importância que seu romance, tido como o primeiro da literatura gótica, teria na literatura mundial? Provavelmente, não. Mas teve e muito. Sempre achei a literatura gótica muito interessante e a literatura russa é uma das minhas preferidas, então vocês podem imaginar como me senti com esse Contos Góticos Russos, publicado pela editora Martin Claret. Resumindo, foi uma sacada simplesmente brilhante.

O primeiro conto, da leva de seis, O Retrato, de Nikolai Gógol, já nós remete a um dos maiores clássicos da literatura inglesa, O Retrato de Dorian Gray (1890) de Oscar Wilde. Não estou dizendo que se trata de uma releitura do famoso livro, nada disso. O que estou dizendo é que as lembranças são inevitáveis, mesmo com pouquíssimas similaridades entre ambos, pois em O Retrato, Gógol trata de assuntos diversos através de um pintor jovem e que não via em seu futuro, nada muito brilhante do que produzir algumas pinturas para pagar o aluguel de seu estúdio-moradia até que compra impulsivamente um retrato misterioso e intrigante numa feira de arte. É através da escrita fluída e maravilhosa, que o autor demonstra toda a ganância humana pelo sucesso, fama e dinheiro. Mesmo que centrado em seu personagem, seus coadjuvantes também demonstram uma tremenda falta de empatia ao próximo, usam e abusam do capitalismo predatório figurado e mais do que nunca, a hipocrisia da sociedade é jogada na cara do leitor a todo momento.

Mas, o principal em O Retrato, é demonstrar o poder devastador que o sucesso pode ter no tocante à corrupção da alma humana. Os sonhos e ideais de qualquer pessoa podem ser radicalmente alterados quando é sentido o gosto do sucesso completo em suas vidas. Obviamente, que como toda a ação, sua reação vai estar presente e, nesse caso, serão as consequências das escolhas feitas pelo jovem pintor. O Retrato é uma bela demonstração da literatura gótica russa, que incorpora o sobrenatural, a desgraça e a desilusão misturados com uma positividade duvidosa da vida plena de prosperidade, mas que em momento algum demonstra uma das principais coisas da vida, a felicidade.

"Dito isso, o pintor estremeceu de repente e ficou pálido: encarava-o, assomando por trás de uma tela em pé, um rosto desfigurado por convulsões. Dois olhos medonhos cravavam-se nele de frente, como se fossem devorá-lo, e uma ordem imperiosa, a de se calar, transparecia nos lábios."

O segundo conto, A Família do Vurdalak de Alexei Tolstói, conta a história da família que foi vampirizada por seu patriarca. Baseado em uma mitologia e folclore da antiga Europa, Tolstói nos apresenta uma história tenebrosa, intensa e de arrepiar, como um bom conto de terror gótico deve ser. A história é contata por um fidalgo que acabou passando pela casa da família e se apaixonou pela filha do dono da casa. Porém, acaba passando por situações tenebrosas que desafiam sua sanidade mas que não corrompe seus valores. Tolstói nos trouxe um conto bastante sufocante, pois a todo momento você tem a impressão de que todos naquela cabana no meio do nada vão sofrer de uma forma ou de outra. A suavidade, e também a lugubridade, fica por conta do amor do forasteiro e da jovem e bela filha, que por serem de camadas sociais bem diferentes, transparece um amor impossível de ser consumado. Os padrões de conduta social não deixam de ser mantidos firmemente e mesmo em meio a uma crise de vida ou morte entre todos os familiares e nosso protagonista, os costumes da época são respeitados até o limite da morte, pois desse ponto em diante, o que vale mesmo é o instinto de sobrevivência. No conto A Família do Vurdalak senti uma forte impressão de que se guiar pelo amor, as vezes, pode ser catastrófico.

"Fosse por não reconhecer seu velho dono, fosse por outro motivo, o cão, que o acompanhava, parou tão logo avistou Gorcha de longe e desandou a uivar, eriçando o pelo, com se visse algo sobrenatural."

A história seguinte, também de Tolstói, pode até ser definida como uma prequel de A Família do Vurdalak, pois em O Encontro Trezentos Anos Depois, nos vemos com nosso fidalgo pouco tempo antes de ir para a Moldávia, onde os eventos tenebrosos do Vurdalak ocorreram. Dessa vez, temos como protagonista, um flerte e amor não correspondido de nosso fidalgo, que, já idosa, conta uma história de terror às suas netinhas. Tolstói nos envolve em uma trama de provocações sutis entre os personagens principais, que acaba nos levando a uma situação traumática e inesquecível para nossa protagonista. Mais uma vez, dentro de todos os costumes de época, Tolstói, costura uma história vibrante, emocionante e com altas doses de sobrenatural, que nos cativa a cada página virada. No começo, eu pensei que esse conto deveria vir antes de A Família do Vurdalak, mas por um pequeno mas perceptível detalhe, ele foi colocado, acertadamente, após.

"De início, não compreendi essas palavras, porém, olhando à minha volta para adivinhar seu sentido, notei um pavor que nenhuma daquelas pessoas que me rodeavam tinham sombra: flutuavam todas diante dos fachos sem interceptar a luz deles."

A história seguinte, Os Fantasmas de Ivan Turguênev, é uma pérola do amor gótico, posso dizer. Nesse conto temos nosso protagonista que tem todo o arquétipo obscuro de se viver; não acha felicidade em nada, tudo que faz parece errado e a tristeza é uma presença marcante em toda a sua vida. Mas algo acontece e um fantasma aparece para ele dizendo que o ama e é assim que ele encontra um pouco de felicidade em uma vida cinza. Turguênev, usa e abusa do amor obscuro nesse conto se utilizando do sobrenatural para demonstrar o amor de duas pessoas que estão em mundos diferentes. Talvez esse seja o conto, nessa coletânea, que mais personifica o estado gótico da literatura e o que mais se aproxima do jeito inglês literato. Os personagens principais são conflitantes e algumas vezes irritantes ao mesmo tempo em que são adoráveis ao ponto de torcermos que a alegria, o amor e a devoção durem. Porém, estamos no "campo cinza" da literatura  e não é bem isso que se pode esperar desse tipo de história. Ivan, tem uma escrita leve e fluída, sabe dar o tom da aventura, do amor e da tristeza e da dúvida.

"Aquilo era mais terrível ainda porque não tinha nenhuma imagem definida. Algo pesado, lúgubre, negro-amarelado, multicolor como o ventre de um lagarto, que não era, porém, uma nuvem nem uma fumaça, movia-se, devagar como um serpente, ao rés do solo." 

Nunca imaginei que Fiódor Dostoiévski poderia estar entre os contistas de um livro de horror clássico e, menos ainda, se utilizando do humor negro para, de uma forma mais do que respeitosa [e engraçada mesmo], homenagear o estilo gótica da literatura inglesa. Seu conto, Bobok, nos leva ao mundo dos mortos no cemitério, onde, segundo o autor, a vida não acaba, mas sim continua como se jamais tivesse acontecido algo como sua própria morte e, quando se pensa que o descanso eterno vai chegar, ocorre justamente o contrário. O protagonista de Bobok descobre sem querer que, de uma forma extraordinária, os mortos se comunicam como se estivessem vivos. Dostoiévski não abre mão de sua usual crítica social e mostra através da tagarelice de seus personagens mortos, toda a hipocrisia sócio-econômica-cultural onde, mesmo depois de falecidos, suas patentes, cargos e reputações ainda são válidas e exploradas no além. Temos aqui um Dostoiévski mais leve, mais alegre, mas sem deixar de cortar a sociedade e mostrar como somos por dentro.

"Decerto fiquei sentado por muito, mas muito tempo; quer dizer, até me deitei naquela comprida pedra em forma de um caixão marmóreo. Não sei como isso aconteceu, porém, de improviso, passei a ouvir certas coisas. De início, não liguei a mínima, fiz pouco caso. Todavia, a conversa seguiu adiante."

Na última história dessa coleção, O Monge Negro, do espetacular contista Anton Tchêkhov, somos envolvidos no sobrenatural e na loucura. Nosso protagonista é um homem inteligentíssimo que acaba tendo uma crise de nervos e vai para o campo na casa de uns amigos antigos. Mesmo em outros ares, ele não altera seu ritmo e continua a escrever suas teses e só pensa em trabalho. Quando se lembra de uma lenda do Monge Negro que é tradicional pelas bandas em que ele estava, as coisas começam a se complicar ainda mais. O tempo passa e ele acaba se casando com sua Tânia, mas seus problemas só pioram e ele se descobre conversando com o tal Monge Negro da lenda local. Tchêkhov, desintegra seu personagem principal aos poucos e através do sobrenatural, vai semeando a loucura violenta nele. O interessante disso tudo é mostrar ao leitor um tipo de metáfora para o relacionamento humano à quatro paredes, com intervenções paternais e empresariais. A relação entre os personagens começa brilhante e colorido, mas ao longo da história essa mesma relação vai perdendo o viço e sua cor, sendo jogada ao mundo, novamente, cinza de ser.

"O monge não respondeu. Kóvrin olhou para ele e não lhe enxergou o rosto, cujus traços ficavam turvos, enevoados. Depois a cabeça e as mãos do monge foram sumindo; seu tronco se mesclou com o banco e o crepúsculo vespertino, e ele desapareceu por inteiro."

Uma das coisas que mais me chamou a atenção nessa coletânea de contos de horror e suspense clássicos, foi a imensa semelhança com os romances e contos góticos ingleses. Mesmo que todas as histórias aqui apresentadas tenham sua base na velha Rússia com belas descrições de cenários e assuntos tipicamente russos, não tem como negar a enorme influência da literatura gótica inaugural. É extremamente, ou melhor dizendo, foi extremamente prazeroso passar por essa experiência literária, que acredito tenha sido uma das melhores nos últimos anos. O brilhantismo da escolha dos contos também foi determinante para que o gótico fosse muito bem representado nessa ótima coletânea. Como eu disse lá no começo, achei brilhante juntar o "russismo" com o "inglêsismo" [duas palavras inventadas] e enaltecer esse ramo da literatura tão amado pelo mundo afora. Repito: Brillhante.

Para terminar, não teria como não falar de uma das edições mais lindas e muito bem elaboradas que a editora Martin Claret teve a coragem e decência de colocar no mercado editorial. A começar pela capa que é literalmente brilhante, ofuscante e totalmente abstrata, o que ao meu ver, se encaixa muito bem no mundo sobrenatural de literatura gótica. O título do livro foi impresso em uma luva, uma tira, que pode ser retirada deixando a capa totalmente ... abstrata. Um trabalho excepcional que é completado com um editorial e artístico de cair o queixo mesmo. Para abrilhantar ainda mais essa pérola, a tradução, notas e introdução ficaram ao cargo do grande Oleg Almeida, que faz um trabalho carinhoso, dedicado e fenomenal em suas traduções e revisões. Acredito certamente que, Contos Góticos Russos, publicado pela editora Martin Claret é sim, O.B.R.I.G.A.T.Ó.R.I.O e I.M.P.E.R.D.Í.V.EL.

Ficha Técnica:

Título: Contos Góticos Russos
Autor: Vários Autores
Tradução: Oleg Almeida
Editora: Martin Claret
Páginas: 336 
Ano: 2020
ISBN: 9786586014365 

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